Arquivo | julho 2012

Entrevista ao Jornal da Mídia


“Um livro é como um filho que a gente traz nas entranhas: ou ele nasce ou nos mata”. A frase, de Osório Alves de Castro, é uma das preferidas do escritor Carlos Araújo para falar de seu ofício. O romancista teve, aliás, que esperar muito para “parir” sua literatura. Pai de três filhas, Araújo se dedicou à vida de bancário e ao sustento da família, por 28 anos, antes de se entregar ao seu mais puro dom: a escrita. “Nesta época em que o sucesso está mais em voga que o talento, se meus escritos despertarem algum interesse no leitor, já me dou por satisfeito”, afirma. No momento lançando seu mais novo romance, “O profeta do Jordão”, Carlos Araújo fala ao Jornal da Mídia sobre sua relação com a literatura.

Jornal da Mídia – Quando começou a escrever? Conte a sua história com a literatura.

Carlos Araujo – Mergulhei de cabeça no mundo encantado da literatura, desde o momento em que comecei a minha vida escolar. Conheci o Brasil inteiro convivendo com os personagens de Machado de Assis, Aluízio Azevedo, Lima Barreto, Manuel Antonio de Almeida, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Augusto dos Anjos, Érico Veríssimo, Patativa do Assaré, José Lins do Rego, Catulo da Paixão Cearense, entre outros. Visitei o mundo com Emily Brontë, Dostoievski, Eça de Queiroz, Henry Miller e Gustave Flaubert. Fui ao fundo dos mares com Ernest Hemingway e Júlio Verne. Aí fiquei maravilhado ao perceber que fiz tudo isso sem precisar sair da pequena cidade de Ipupiara, onde nasci e de Ibotirama, onde passei a morar depois dos dezesseis anos de idade. Tornei-me, então, um leitor contumaz e estava a um passo de ser mais um escrevinhador. Aquele universo me era familiar. Mas só muito mais tarde é que fui convencido, por conhecidos e amigos, de que tinha alguma habilidade (dom) para a escrita ao receber elogios, em “fortuna crítica”, pelos livros que escrevi e apresentei a eles para análise. Não fiz faculdade de letras. Eu me formei contador, quando esse curso fazia parte do ensino médio. Aí fui trabalhar em banco.

JM – Qual a forma literária que prefere ao escrever?

Carlos Araujo – Juntando minha autocrítica às apreciações dos leitores, eu estou convencido de que me saio melhor na prosa (romance). Mas também gosto de cometer os meus modestos poemas populares.

JM – Quais os temas que despertam seu interesse?

Carlos Araujo – Dou inteira razão àqueles que acreditam que a literatura pode ter uma função social. Na verdade, o escritor escreve sobre suas vivências. Sou um homem da Chapada Diamantina, do Nordeste. Essa terra e suas questões sociais são recorrentes nos meus escritos.

JM – Qual o tema central de Milagre na Chapada – Romanceiro da Chapada Diamantina, seu primeiro romance? Onde o senhor buscou inspiração?

Carlos Araujo – Propositalmente botei o nome do personagem central do romance de Noel Serafim (o que renasce das próprias cinzas, como a fênix), pois ele sai do fundo do poço através de um milagre e de seus próprios esforços. Tentei uma inovação neste romance. Fugi do usual foco narrativo de primeira ou terceira pessoas. Neste romance, um personagem apresenta um livro para outro personagem ler, e dessa leitura resulta o desfecho da história. Tudo isso ambientado na Chapada Diamantina, no tempo dos coronéis.

JM – Além de Milagre na Chapada, o senhor tem outros livros publicados? Caso tenha, gostaria que contasse um pouco sobre os temas centrais do(s) seu(s) livro(s) e citasse o(s) título(s), ano(s) de publicação e editora(s).

Carlos Araujo – Em parceria com Lamartine Araujo, meu irmão, publiquei o livro IBOTIRAMA CAPITAL CÉU (2002); lancei IBOTIRAMA E AS CANÇÔES DE AGOSTO (2003), em parceria com Edson Ferreira e Edvaldo Pereira, com o patrocínio da Secretaria da Cultura do Estado da Bahia; “Milagre na Chapada-Romanceiro da Chapada Diamantina”, romance, São Paulo, Editora Scortecci, 2005. “O Dono do Santo da Chapada”, romance, São Paulo, Editora Scortecci, 2007 e “O Profeta do Jordão”, romance, São Paulo, Editora Scortecci, 2009.

No romance, “O Dono do Santo da Chapada”, eu também tentei uma inovação. Saindo do foco narrativo tradicional, deixo que três personagens boêmios e notívagos: Espirro de Grilo, Heitor Fila Grogue e Clodô Sete Manhas conduzam a trama – Que é uma crítica bem humorada à religiosidade do povo nordestino.

Em “O Profeta do Jordão” eu pretendi prestar uma homenagem ao meu amigo Zequinha Barreto, ao abordar a “causa” de sua vida: seu destemor em lutar para ver o Brasil se livrar das garras dos altos coturnos do golpe militar de 1964. Eu também cogitei registrar uma certa força misteriosa que uniu sua vida ao destino do Capitão Carlos Lamarca, a ponto de trazer os dois, sempre unidos, dos grandes centros do sul do país para a tarde do dia 17 de setembro de 1971, em Pintada, município de Ipupiara, e ali, na solidão da caatinga, levar sua “causa”, seu ideal às últimas conseqüências, pagando o preço da ousadia com a própria vida. O livro é ditado por um defunto e vivido pelo próprio autor.

JM – O que o senhor pretende provocar no leitor?

Carlos Araujo – Nesta época em que o sucesso está mais em voga que o talento, se meus escritos despertarem algum interesse no leitor, já me dou por satisfeito. Gostaria que fossem a faísca que faz disparar o pensamento, entretanto, tenho consciência de que o ofício de escritor é hoje em dia uma ocupação de abnegados, de teimosos. Escrevo mais pelo prazer de ver a obra concluída.

JM – Quais os livros e escritores que mais lhe marcaram?

Carlos Araujo – Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Memórias de um Sargento de Milícias, São Bernardo, Grande Sertão: Veredas, O Tempo e o Vento, Crime e Castigo, Eu e Outros Poemas, dos escritores anteriormente citados. E mais recentemente “Porto Calendário”, do escritor baiano Osório Alves de Castro.

JM – Qual a importância de se desenvolver o hábito da leitura?

Carlos Araujo – “Ler é para a mente o que o exercício físico é para o corpo”. “Os livros que cativam nossa atenção para o mundo das letras são também formas de despertar nosso espírito para a reflexão”. “Quem lê bons livros está preparado para ler a vida”. Tudo isso já foi dito pelos mestres e eu só tenho que endossar.

JM –  O que o hábito de escrever lhe proporciona?

Carlos Araujo – Como disse o escritor de Santa Maria da Vitória, Osório Alves de Castro, e eu concordo: “Um livro é como um filho que a gente traz nas entranhas: ou ele nasce ou nos mata”. Um romance quando toma forma em nossa mente fica ali, martelando no nosso juízo, de dia e de noite, nos pedindo para ser escrito. Não nos livramos dele até o dia em que decidimos botar no papel. Escrever, pra mim, além de proporcionar um grande prazer, é uma necessidade. Vinha me preparado durante vinte e oito anos para quando me aposentasse do Banco abraçasse certo ofício. E esse ofício era escrever.

Meu Verso

O meu verso é natural
Da Chapada Diamantina.
Vem dos zelos de Mãe Lina
E das lições de moral.
Vem das Minas de cristal
Do calumbé e da pá.
Da lavanca de cavar
Do querer e do despojo.
Vem do bamburrar no bojo
De cristal a cintilar.

Vem d’aridez do carrasco
Da estiagem do agreste
Do vento que vem do leste
De graveto no penhasco.
É tão seco como o casco
Da cuia de cabaceira.
Nem palha que faz esteira
Tem a sua sequidão.
É seco como o torrão,
Como cinza em capoeira.

Tem marcas do desamparo
E virtude do perdão
Poder de superação
De um passado ignaro.
Vem d’um feliz anteparo
Com paz, carinho e amor.
Foi de anjo benfeitor,
Em formato de mulher,
Que com sacrifício e fé
Fez um ninho acolhedor.

Retrata a fauna e a flora:
O nado do mergulhão,
O vôo do azulão
Bem no despertar da aurora.
Vem da figueira que chora
E do gosto de articum.
É negro como o anum
E brabo como tetéu.
Mandaçaia que faz mel
De flor de manga comum..

De essência singular,
Tem a mistura das cores,
Dos perfumes e sabores
Que captou do lugar.
É doce como araçá
E rapadura cerenta.
Tem o ardor da pimenta
E as cores do jasmim.
Tem cheiro de bogarim
E efeito de água-benta.

Vem da casa de terreiro
Pintada de tabatinga
Que tem água de moringa
E a luz de candeeiro.
Vem da pimenta-de-cheiro
Pra tempero de pirão
Cozinhado em caldeirão
Ensopado com verdura.
“De comer” com a mistura
De arroz com açafrão.

Vem da observação
Das nuvens beijando a serra,
Cheiro de chuva na terra
E do ronco de trovão.
Começo de plantação
De feijão-de-corda e milho.
Fumo, de corda, em sarilho
No quintal para secar.
Do vôo do mangangá
E do mugir de novilho…

Do doce de compoteira
E gomo de mexerica
Água tomada na bica,
Café de choculateira.
Cantiga de vó rendeira
Cochilo com cafuné.
Avô cheirando rapé
Com ar despreocupado.
Menino fotografado
Com a máquina de tripé.

Da moça trajando chita
No festejo de São João.
Igreja, reza e rojão,
E bandeirola que agita.
Do leiloeiro que grita,
Pedindo oferta melhor.
Da cachaça e trololó,
Casamento e batizado.
Do mastro sendo enfincado
Com vento trazendo pó.

Vem das tardes de prazer
Com bola de mangabeira
Muito jogo e brincadeira
Até candeia acender.
Do ver a lua nascer
No colo quente da vó.
Com picada de potó
Que, de noite, irrita e coça.
De manhã, na velha roça,
Plantando feijão no pó.

Fez inversa trajetória
Como numa regressão
Pra trazer da região
O que ficou na memória.
Vendedor contando história
De forma espirituosa
De meizinha milagrosa
Pra curar qualquer doença
Explorando a velha crença
Levando besta na prosa.

Traz de feira inspiração
Mais originalidade:
Da banca de brevidade
Com paçoca de pilão.
Da cigana que lê mão
Pra tirar qualquer quebranto.
Meninos em contracanto
Com tábuas de pirulito
Mulher rezando bendito
Vendendo imagem de Santo.

Trago a minha poesia
Das Lavras Diamantinas
Onde o cascalho das minas
Era de grande valia.
O interior da Bahia
Me deu o metro e a rima.
O resto veio do clima,
Do sol, da terra e do ar.
Do constante caminhar
No garimpo serra acima.

Ponho no verso o que via
Lá na Fonte do Pau-Louro
Nas gramas do quaradouro
Uma vasta estamparia.
Da bica a água escorria
Com mulher enchendo a lata.
A branca, a preta e a mulata,
Trançando a mesma rodilha
Pra andar na velha trilha
Sempre arrastando a pracata.

Só vi pé de caroá
Em terreno pedregoso
Com raiz de fedegoso
Minha avó fazia chá.
O bico do carcará
Era igual unha-de-gato.
Vi grassar bredo, no mato,
Como ervanço e jitirana.
Qualquer farinha baiana
Era medida no Prato.

No brejo, quando menino,
Brinquei com fogo-pagou
No Cercado de Doutor,
Velho Doutor Gasparino.
Em lamento matutino,
Uma pomba juriti.
Na Lagoa, o paturi,
Vi nadar entre o capim,
E o bate asas sem fim
Do pequeno Bem-te-vi.

Pro meu verso foi achado
Esse interior baiano.
Mascate vendendo pano
Soltando o palavreado.
Feira de sol empinado
Onde se vendia puba,
Tapioca de Imbaúba,
Carne seca de varal.
Farinha do Traçadal
E maniva da Pituba.

Vem do mais belo cenário:
Lá da Serra do Carranca,
Cuja beleza desbanca
Qualquer um receituário.
Vem do canto do canário,
Pintassilvo e zabelê.
Vem da pega e do sofrê
Nas flores do mulungu.
Vem do tempo do umbu,
Do preá,do saruê.

Traz ainda a emoção
Do mágico deslumbramento
Do girar do cata-vento
Na casa de Sinhorzão.
História de assombração
Em noite de lua cheia.
Casa de parede-meia
Com santo no oratório.
Menino de suspensório,
Domingo, cavando areia.

Sai do enredo do sonho
Do fluir do pensamento.
É distraído e atento,
Inteligente e bisonho.
Possui um poder medonho
Parece mais deus pagão.
Não foge de tentação
Tem forma de Ipupiara.
E seduz a deusa Iara
Ecoa pelo sertão.

Um marco na história de Ibotirama

A propósito do início do período letivo de 2009, pretendo discorrer um pouco sobre a importância de uma instituição que foi um marco na história de nossa cidade. E vejam que usei o verbo no pretérito.

O epíteto de “Terra do já teve”, usado amiúde para centenas de cidades Brasil afora, cabe também como uma luva para esta  “Capital Céu”!

Os mais jovens daqui, que são obrigados, nos dias atuais, a enfrentar enormes filas de banco, por horas a fio, precisam saber que, no final século passado, Ibotirama já contou com quatro agências bancárias, com atendimento cidadão – para usar a palavra da moda.  Aliás, nossa cidade já foi considerada terra de jovens. Nos dias de hoje, muitos deles, por falta de perspectivas, foram sendo empurrados para Barreiras, Salvador, Luiz Eduardo e São Paulo, para citar apenas quatro cidades.

Ainda é presença viva em minha memória a lembrança de cidadãos ibotiramenses operantes, merecedores dos mais rasgados elogios, por terem criado e colocado em funcionamento os mais diversos tipos de associações: educacionais, de classe, desportivas e sociais. Eles empregaram nesses atos toda esperança, emoção e desejo de serem úteis ao torrão natal.  Por outro lado, aqui também pontificou uma turma encarregada de diminuir todo esforço alheio, através da desmoralização, da sabotagem política, do ridículo e da indiferença.

Foi aquele primeiro grupo que, nos idos 1963, concretizou um sonho antigo ao criar o Colégio Cenecista de Ibotirama – um marco na história de nossa comunidade.

Não há que se falar de educação e cultura nesta cidade sem se mencionar o saudoso Colégio. De suas salas saíram muitos dos nossos atuais médicos, engenheiros, advogados, comerciantes, políticos, artistas e profissionais liberais, os mais diversos. Aliás, ali nasceram os nossos já decanos festivais de música e de poesia.

O Colégio Cenecista tinha a orientação pedagógica da organização sem fins lucrativos, criada nos anos cinquenta pelo paraibano Felipe Tiago Gomes, chamada Campanha Nacional de Escolas da Comunidade – CNEC. Na instituição, os alunos não pagavam mensalidade. Os pais eram sócios e contribuíam através de uma pequena paga. Nos primeiros anos, os professores não recebiam salários. Lecionavam mais por benemerência, aceitavam, de bom grado, um valor simbólico por aula.

O patrimônio do Colégio foi sendo construído desde sua pedra fundamental pelos esforços da comunidade, num terreno de mais de um hectare, no início da Av. Ex-Combatente. O estabelecimento educacional experimentou seu apogeu nas décadas de 70 e 80.

A partir da década de 90, tendo que enfrentar a gratuidade e alimentação oferecidas nas escolas da rede pública; a concorrência das escolas particulares; a indiferença das autoridades e de grande parte da população local, o Colégio começou a agonizar, se tornou um “moribundo”. O egocentrismo, que marca a entrada deste século XXI, jogou a última pá de cal na vida profícua desse Colégio.

O valor considerável do patrimônio do “moribundo”, em face de sua localização privilegiada – na Av. Ex-Combatente –, fez com que muitos “pseudo-proprietários” avançassem como urubus na disputa de seus restos mortais. Orgulho-me de pertencer ao grupo que ajudou a construir a instituição e conseguiu salvar, na justiça, o patrimônio desse marco na história de Ibotirama, após quitação dos direitos trabalhistas de todos que reclamaram.

Alguns minimizam a importância do Colégio Cenecista de Ibotirama na construção da cidade e na formação de nossa sociedade. Argumentam eles que detentores de algumas fortunas daqui não passaram pelas salas do saudoso Colégio. A esses eu respondo pela boca de Confúcio: – “A cultura está acima da diferença da condição social”.

Isso é para se pensar!

Ibotirama e sua gente

Conta uma anedota popular brasileira que Deus, ao desenhar o mundo, colocava em cada lugar um desastre natural: um vulcão aqui, um furacão ali, um terremoto acolá. De repente, concebeu um país de beleza esplendorosa, sem nenhum desses fenômenos da natureza. Aquilo chamou a atenção de São Pedro, que imediatamente reclamou da injustiça com que as benesses da natureza eram distribuídas pela Terra. Então o Pai Eterno respondeu: Em compensação, Pedro, você nem pode imaginar o povinho que eu vou colocar lá!

No passado, esta esplêndida faixa de terra da margem direita do Velho Chico, onde hoje moramos, se transformou de Curral da família Guedes de Brito em porto de travessia de boiadas e de tropas, em curto espaço de tempo.  Nossa Senhora da Guia ganhou as terras de presente. Vieram os curibocas, os mamelucos, se juntaram aos beiradeiros e aqui fixaram moradias. Na ocasião em que os residentes rezaram a primeira missa na capela da Santa, o lugar já era um arraial e se chamava “Bom Jardim da Rica Flor”.

Na década de quarenta, do século XX, quando o então distrito de Paratinga recebeu o nome de Ibotirama, duas regiões próximas já mantinham relativo comércio em lombo de burro com o Lugar: a Ribeira (Santana dos Brejos, Cotegipe…) e as Lavras (Oliveira dos Brejinhos, Brotas de Macaúbas, Ipupiara, Seabra…).  Em pouco tempo, Ibotirama se tornou uma cidade-pólo e atraiu para seu torrão, principalmente, os brejeiros das Lavras Diamantinas. Eram famílias inteiras daquela região brejeira que vinham em grupos e aqui se estabeleciam.

Em 1963, fiz parte dessa leva de brejeiros e para cá me mudei, procedente de Ipupiara. Naquela época, devido ao calor intenso dessa beirada de Rio, era costume se dormir tranquilamente, com as janelas escancaradas, sem o mínimo receio de ter sua casa invadida por um larápio qualquer.

A partir da década de 1970, a cidade começou a ser cortada por rodovias. Veio o progresso, e junto a ele a criminalidade, a insegurança, a violência. De uns tempos para cá, acontecimentos como assassinatos, assaltos, roubos, estupros, tráfico de drogas, roubo de cargas, arrombamentos, passaram a ser episódios do nosso dia-a-dia. Essas ações criminosas aqui se tornaram cotidianas, repetidas à exaustão, em plena luz do dia. Nossa cidade então se tornou “famosa” em todo o Estado, nesses quesitos. A desfaçatez e a banalidade chegaram a tal ponto que essas investidas delituosas se tornaram prerrogativas até das mulheres.

Em conversa com um comerciante amigo, ele me segredou que fica apavorado, atrás do balcão, quando entra em sua loja qualquer pessoa desconhecida. Imagina imediatamente que a criatura vai anunciar um assalto, pois seu estabelecimento já fora alvo recente de meliantes.

No decorrer do bate-papo com esse meu interlocutor eu fiquei encafifado, a imaginar se Deus (em relação aos habitantes de Ibotirama) não havia exagerado um pouco na distribuição do “povinho” da anedota do início desta matéria. Em caso positivo, fica o remate com esta dúvida: as mazelas da criminalidade, insegurança e violência impregnadas em nossa sociedade deveriam ser estancadas pelas autoridades terrenas competentes, ou deveríamos ir clamar direto ao Bispo?

A despeito da ironia, tudo isso é para se pensar!

O Papel de cada um

Um personagem teimou de se instalar em meu pensamento e ficou ali martelando o tempo todo como uma cantiga de grilo: “O Armador de Circo”. Foi no momento exato em que soava o derradeiro acorde e ecoavam as palavras finais do último evento cultural da Semana da Cidade, e já se cogitava avaliar a programação recém-concluída de 2009, aqui em Ibotirama.

Até a segunda metade do século XX, antes do advento da televisão, o circo ainda era atração de entretenimento nas cidades do interior por esse Brasil afora. No tempo de garoto, a chegada de um circo, pra mim, era um acontecimento festivo e inesquecível. Quando os caminhões levantavam poeira na entrada do lugar, atulhados de apetrechos, a garotada os seguia, com curiosidade e expectativa, até o local adequado para a armação da empanada. Aí, começava o trabalho extenuante desse personagem de bastidor: “O Armador de Circo”. De picareta e marreta em punho, ele começava a enfincar piquetes, estacas, mourões, mastro, esticar cordas, cabos de aço e armar a lona. Terminada essa parte, ia para debaixo da empanada e armava a arquibancada, o picadeiro e o trapézio. No finalzinho da tarde, já exausto, ele era, muitas vezes, obrigado a fazer dupla jornada de trabalho, na portaria, para vender os bilhetes de entrada. Não participava e nem ao menos tinha o direito de assistir ao espetáculo. Por vezes era chamado às falas, quando, eventualmente, desabava uma tábua da arquibancada ou mesmo quando se descobria que alguns garotos haviam penetrado sorrateiramente no circo por uma fresta da lona, não adequadamente ajustada.

Por ser o circo ainda uma lembrança muito presente na memória, minha mente achou de fazer essa analogia entre o personagem circense e os membros do Fórum Cultural Permanente de Ibotirama. Fizemos reuniões cansativas, discutimos, votamos, aprovamos e assinamos um Termo de Compromisso com a Cultura local. Feito isso, partimos para o trabalho de planejamento e execução dos eventos. Mesmo considerando que houve avanços significativos nas realizações culturais deste ano, alguns obstáculos e empecilhos vieram embotar algumas “atrações” que foram tão bem planejadas para a Semana da Cidade: a desunião, os melindres dos nossos “artistas” e a quase total indiferença de atores da área educacional aos eventos levados a cabo. De um lado, choveram reclamações de artistas e “celebridades” locais em cima dos membros do Fórum, a cada momento em que seus desejos eram contrariados. De outra parte, profissionais ligados ao ensino do lugar não demonstraram o mínimo interesse a acontecimentos culturais históricos em nossa terra, como a inauguração da sede própria da Biblioteca Damião Dantas e a palestra do escritor Carlos Ribeiro.

Por ter consciência de que a cultura é fonte que alimenta a educação e o conhecimento, esses episódios todos deixam um gosto amargo de frustração e desânimo neste “Armador de Circo” do Fórum que vos escreve.

Nos últimos dias, fatos desse jaez têm remetido meu pensamento direto ao caso da professora baiana que foi demitida depois de rebolar e mostrar o traseiro em palco de baile de pagode. Sua performance foi clicada e as imagens se espalharam pela internet. Imediatamente, a educadora foi guindada à condição de “celebridade” nacional, aparecendo em diversos programas de televisão. Em entrevista ela já anunciou que está disposta a posar nua em revista masculina. Sinal dos tempos!

Não me cabe aqui julgar se a professora estava certa ou errada no seu procedimento.  Nessa época de inversão de valores morais e familiares, finalizo com uma frase de um internauta, bem a propósito do caso. Ele espelha o pensamento atual sobre “o papel de cada um”: “Dançar axé, fazer sessão de fotos para revista masculina, apresentação em programas de auditório/fofocas e muitas outras oportunidades muito mais promissoras surgirão para a ex-professora”.

Ps. A propósito, o título da música que era tocada enquanto a professora rebolava é: “Todo Enfiado”.

Isso é para se pensar.